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Mitos e Verdades sobre Dislexia

Atualizado: 
26/06/2019 - 15:16
Sabia que a dislexia é uma disfunção neurológica, que se manifesta ao nível da dificuldade de aprendizagem da leitura, em pessoas com inteligência normal ou acima da média? Apesar de existir cada vez mais informação sobre o tema, a verdade é que ainda existem alguns mitos associados à dislexia. Por isso, e com a ajuda dos especialistas Octávio Moura, Marcelino Pereira e Mário Simões, tentamos esclarecer e desmistificar as principais crenças.
Dislexia criança

A Dislexia é um défice apenas da infância.

Esta afirmação reproduz um mito generalizado e que é importante desmistificar. Sendo uma perturbação do neurodesenvolvimento é, por definição, um problema que se manifesta na infância, no entanto o seu carácter permanente indica-nos que percorrerá todo o ciclo de vida da pessoa, ainda que o seu impacto na trajetória desenvolvimental e na qualidade de vida seja maior na infância. É ainda importante salientar que o facto de ser uma perturbação permanente não lhe confere imutabilidade, sendo passível de substanciais melhorias com a implementação de medidas de intervenção ajustadas. A investigação feita neste domínio, com planos longitudinais, revela que os sintomas da Dislexia se mantêm ao longo do desenvolvimento, sobretudo no que se reporta ao desempenho ortográfico pobre e à baixa velocidade de leitura. Do mesmo modo, nos estudos longitudinais, constata-se que o perfil neuropsicológico do adulto é muito semelhante ao que havia sido observado quando ele era criança. Neste contexto, observa-se uma tendência crescente para proporcionar medidas educativas especiais a estes alunos durante toda a escolaridade, incluindo o ensino superior, nomeadamente através de acomodações curriculares. Por exemplo, utilização de diferentes modalidades e instrumentos de avaliação e/ou adaptações de materiais e recursos educativos.

A Dislexia é hereditária.

É uma ideia relativamente generalizada e que vai encontrando eco na investigação, ao constatar-se que a prevalência da Dislexia entre elementos da mesma família é elevada. De um modo geral, refere-se que cerca de 2/3 das crianças com Dislexia apresentam antecedentes familiares, considerando-se que a história da família é um factor de risco importante. A investigação demonstra que 23 a 65% das crianças que têm pais com Dislexia poderão também apresentar Dislexia, e entre irmãos a percentagem é de 40%. Outros autores referem que a probabilidade de um rapaz apresentar Dislexia é de cerca de 50%, no caso do pai ser disléxico, e de 40%, no caso de ser a mãe. Este aspecto poderá ter implicações no protocolo de avaliação e diagnóstico da Dislexia, que deverá incluir um questionário referente à história de desenvolvimento da leitura dos pais da criança. Por seu turno, a eventual natureza hereditária poderá ter implicações ainda a outros níveis, nomeadamente na planificação do processo terapêutico ou reeducativo, pois inviabiliza frequentemente que um dos progenitores possa assumir o papel de coterapeuta. No entanto, também poderá traduzir-se em algumas vantagens, nomeadamente pelo facto de os pais estarem muito mais sensibilizados para o problema, conduzindo a uma sinalização e intervenção mais atempada e, consequentemente, mais eficaz. Será ainda importante referir, no que se reporta à gravidade do problema, que o facto de haver antecedentes familiares não conduz diretamente ao aumento do grau da perturbação.

Os estudos no domínio da genética propõem uma relação entre nove regiões cromossómicas e a Dislexia.

A Dislexia tem cura.

Sendo esta afirmação um mito é sobretudo importante que ela não gere o contra mito de que ela não tem cura. Ou seja, a Dislexia é uma perturbação permanente, mas que não é evolutiva ou progressiva, sendo susceptível de grandes melhorias após a implementação de programas de reabilitação neuropsicológica e educativa. De um modo geral, a maior parte dos programas de intervenção incorporam, na totalidade ou parcialmente, os seguintes princípios: multissensorialidade (ouve-se, vê-se e sente-se); repetição com vista à automatização (neste domínio os programas de treino da leitura repetida começam a ser uma estratégia muito frequente); programas altamente estruturados e de base fonológica, estando demonstrado que os métodos globais não são indicados para as crianças com Dislexia.

Relativamente ao prognóstico, de um modo geral, poderemos dizer que o quadro se modifica com a idade. Assim, os erros mais bizarros ou arcaicos desaparecem em maior ou menor grau na leitura de textos, mas encontram-se frequentemente na leitura de pseudopalavras ou na aprendizagem de uma língua estrangeira. Com o avançar da idade, a criança com Dislexia acaba por dominar o princípio da decodificação (que conduzirá a uma leitura com adequado grau de precisão), mas apresentará dificuldades na fluência ou velocidade de leitura. No desempenho ortográfico terão sempre mais dificuldades. De um modo geral, poderemos dizer que os automatismos da actividade leitora não são completamente integrados e subsistirão as dificuldades na compreensão das mensagens escritas.

Todas as crianças que têm dificuldade em aprender são disléxicas.

É um mito e provavelmente será uma das questões que maior confusão tem gerado no seio da temática das dificuldades/perturbações da aprendizagem. Assim, deveremos ter presente a ideia de que o insucesso escolar (ou os problemas na aprendizagem) é um sintoma comum a diferentes quadros clínicos e que não podemos confundir o sintoma com a doença. Ou seja, os problemas de aprendizagem (sintoma) encontram explicação em factores de natureza diversa, individual e contextual. Por exemplo, na terceira infância, puberdade e adolescência o insucesso escolar está muitas vezes associado a estados depressivos. Estima-se que em cerca de 50% dos casos, as dificuldades na aprendizagem são o motivo expresso da consulta da criança deprimida. Do mesmo modo, deverá ficar clara a ideia de que a Dislexia é na sua essência uma Perturbação da Aprendizagem Específica. Saliente-se que esta é uma questão importante do ponto de vista teórico e também do ponto de vista prático ou da intervenção, pois dificilmente se poderá delinear uma planificação educativa eficaz se não tivermos em conta a natureza/etiologia das dificuldades/insucesso escolar.

Dislexia é sinónimo de baixa inteligência.

Estamos face a mais um mito, que importa combater, pois, por vezes, apresenta um forte impacto na saúde mental da criança com Dislexia, levando-a estruturar um conjunto de atribuições negativas e generalizadas sobre as suas capacidades cognitivas. Refira-se que até há pouco tempo atrás, a discrepância entre o nível de espectativa (resultado alcançado numa escala de inteligência) e o desempenho na leitura (resultado obtido num teste aferido de leitura) constituía o critério fundamental do diagnóstico da Dislexia, impondo-se como limiar mínimo um valor de QI igual ou superior a 90 num teste de inteligência. Atualmente, esse valor é bem mais condescendente mas continua a excluir as dificuldades intelectuais como factor etiológico primário da Dislexia.

A referência à capacidade intelectual da criança e o papel que essa parece apresentar na aquisição e desenvolvimento da leitura pode também ser encontrada na literatura, embora a sua importância e impacto varie nos diferentes estudos. De um modo geral, a literatura da especialidade reporta uma associação fraca a moderada entre leitura e inteligência e essa relação tende a ser maior nos primeiros anos de escolaridade. Assim, o QI medido durante o Jardim de Infância parece explicar 15 a 22% da variância observada na leitura no 1º ano de escolaridade, passando, com o decorrer dos anos escolares, a adquirir um peso residual e a correlacionar-se de modo mais significativo com a compreensão da leitura.

Não existe diferença entre um aluno com Dislexia ou um aluno que tem dificuldades a ler.

Estamos face a uma questão ainda em aberto e que remete para especificidade da Dislexia enquanto perturbação do neurodesenvolvimento. A questão que se coloca é a de saber se os processos neurocognitivos que caracterizam as crianças com Dislexia (défices na consciência fonológica, dificuldades em evocar rapidamente códigos fonológicos, memória de trabalho verbal, etc.) são notoriamente diferentes daqueles que apresentam as crianças com problemas na leitura (leitores fracos ou leitores pobres) mas que não são diagnosticadas como disléxicas. Neste domínio, os dados da investigação demonstram alguma divergência. Assim, alguns estudos revelam a ausência de diferenças entre leitura das crianças disléxicas e a das crianças de baixo desempenho na leitura (não consideradas disléxicas) em medidas de linguagem, soletração e memória. Ou seja, nestes casos as crianças com Dislexia partilham défices neurocognitivos com as crianças que apresentam baixo desempenho na leitura sem serem disléxicas. No entanto, outro grupo de investigações refere resultados que desenham diferenças no perfil neurocognitivo dos dois grupos, em particular no que se refere à velocidade de processamento de informação verbal que penaliza sobretudo as crianças com Dislexia.

Mais pacífica é a análise diferencial entre os indivíduos com Dislexia e aqueles que apresentam uma compreensão pobre da leitura (“poor comprehenders”). Nestes casos, a criança com Dislexia apresenta um perfil diferenciado dos indivíduos com compreensão pobre (“poor comprehenders). Assim, uma criança disléxica apresentará dificuldades na capacidade de decodificação, défices fonológicos marcados e poderá retirar algum benefício da qualidade global da leitura quando apoiada no contexto. Por seu turno, uma criança com défices na compreensão da informação lida terá um desempenho normativo na componente fonológica mas apresenta dificuldades no processamento semântico; não demonstra ganhos significativos na leitura quando apoiada no contexto; frequentemente, manifesta alterações na compreensão da linguagem oral e que poderão ser enquadráveis numa perturbação da linguagem.

Em síntese, esta é efetivamente uma questão cuja resposta carece de mais investigação.

Não há como saber se uma criança é disléxica antes de ir para a escola.

À semelhança da anterior, esta é uma questão igualmente em aberto. De facto, os precursores/preditores da Dislexia de Desenvolvimento carecem de mais investigação. Algumas dificuldades podem fazer-se sentir durante a idade pré-escolar, mas a maior parte só se torna evidente mais tarde. As narrativas parentais acerca desta questão demonstram o “carácter oculto” do problema até à entrada na escola e a surpresa que ele provoca “­antes de entrar para a escola era muito esperto. Tão esperto que pensámos que viesse a ser um bom aluno”. Mesmo assim, a investigação permite elencar os preditores mais fiáveis: (i) A consciência fonológica (a capacidade para identificar, reter e manipular os sons da linguagem oral) tem sido apontada como melhor preditor da exactidão e fluência da leitura; (ii) O conhecimento do nome das letras tem sido identificado como um dos preditores mais importantes na fase inicial de aquisição de competências de leitura, surgindo como bom preditor de dificuldades de leitura; (iii) a velocidade de nomeação, também conhecida como nomeação rápida automatizada (RAN) ou velocidade de acesso ao léxico mental, é analogamente considerada um importante preditor da capacidade de leitura, sobretudo da fluência. É uma competência que se refere à velocidade de acesso e recuperação dos códigos fonológicos arquivados na memória a longo prazo; (iv) o desempenho em tarefas de fluência verbal também se tem apresentado como um bom preditor da Dislexia.

Por último, será importante referir que comportamentos como a leitura e escrita em espelho de números e letras ou as perturbações na articulação da fala, que são frequentemente motivo de preocupação para os pais da criança em idade pré-escolar, apresentam fraco valor preditivo.

A Dislexia afeta mais os meninos que as meninas.

De um modo geral, as perturbações do neurodesenvolvimento, nas quais a Dislexia se inclui, apresentam uma maior prevalência no sexo masculino ainda que numa relação variável e que gradualmente tem decrescido. Assim, na década de 70 do século XX apontava-se para o predomínio dos rapazes na ordem de 4:1. Mais recentemente esse rácio varia entre 3:1 e 1,3:1. Tal facto poderá encontrar explicação em factores de natureza diversa, nomeadamente os que se referem aos critérios de constituição das amostras, sendo mais facilmente sinalizados os rapazes porque apresentam mais problemas de comportamento do que as raparigas. Isto explicaria, por exemplo, o facto do diferencial do rácio aumentar quando se trata de amostras clínicas e diminuir nos estudos de natureza epidemiológica. Uma outra explicação poderá encontrar-se na hipotética maior vulnerabilidade dos rapazes para as disfunções cerebrais, que poderão estar na origem da Dislexia ou ainda a alegada maturação cortical mais lenta nos rapazes.

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Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
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Foto: 
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