Entrevista

Há vida para além do VIH, mas ainda nos falta «literacia»

Atualizado: 
10/12/2018 - 09:50
Estima-se que, em Portugal, cerca de 90% dos doentes com VIH estão diagnosticados e que quase todos estão em tratamento. Os dados oficiais indicam que o país está no bom caminho no cumprimento das metas traçadas pela ONUSIDA para 2020. No entanto, continuamos a ser o país europeu com a maior taxa de diagnóstico. Para entendermos o que ainda falta fazer no combate à doença, o Atlas da Saúde esteve à conversa com Cátia Caldas, Infeciologista no Serviço de Doenças Infeciosas do Centro Hospitalar Universitário de S. João, que admite que é preciso derrubar preconceitos e fazer chegar informação onde ainda é necessário. “Não basta passar informação, é necessário que ela alcance, sobretudo, as populações alvo e o faça da forma mais adequada, eficaz e fidedigna. O estigma associado a esta doença ainda é demasiado pesado e os tabus ainda são muitos”.

De acordo com os dados oficiais, mais de 90% das pessoas que vivem com VIH estão diagnosticadas. Destas, 85% encontram-se a receber tratamento e quase todas apresentam carga viral indetetável. Que conclusões se podem retirar destes números? Está Portugal, de facto, no bom caminho no que diz respeito à luta contra a SIDA?

Portugal está claramente no bom caminho. E, ainda que nos últimos dados apresentados falte um dos três “90”, acredito que, neste momento, já tenha sido alcançado.

No entanto, apresentamos uma taxa de diagnóstico superior à média europeia. Neste sentido, o que falta fazer ou o que falha em matéria de prevenção e diagnóstico?

A taxa de novos diagnósticos em Portugal é cerca do dobro da média europeia. No entanto, nos últimos anos, tem-se verificado uma tendência decrescente. Ainda temos muito caminho pela frente, mas com a absoluta certeza de que muito já foi feito. A melhoria destes números passará por continuar a investir na prevenção e no diagnóstico e as estratégias traçadas terão de continuar a ser ajustadas a uma epidemia que evolui com o tempo. Os maiores esforços, atualmente, devem ser orientados para as populações em maior risco e que englobam o maior número de novos diagnósticos: homens que fazem sexo com homens (HSH) e heterossexuais com idade igual ou superior a 50 anos.  

O que explica que, numa altura em que não falta informação sobre o tema, o número de casos diagnosticados se mantenham elevados quando comparados aos de outros países?

O problema não passa pela quantidade de informação, mas antes pela qualidade da informação e pela forma como é transmitida. Não basta passar informação, é necessário que ela alcance, sobretudo, as populações alvo e o faça da forma mais adequada, eficaz e fidedigna. O estigma associado a esta doença ainda é demasiado pesado e os tabus ainda são muitos.

Se a total falta de informação ou conhecimento é prejudicial, a disposição de informação errónea não o é menos, por conduzir a atitudes baseadas em pressupostos incorretos e levar a uma falsa sensação de segurança.

O portal VIHDA da MSD é um bom exemplo de como plataformas de informação, fidedigna e cientificamente validada, podem ajudar profissionais de saúde, doentes e cuidadores a entender a doença, a preveni-la e tratá-la, bem como melhorar a qualidade de vida de quem vive com VIH.

Neste sentido, e uma vez que ainda exista alguma confusão entre estas duas entidades clínicas, o que é a infeção por VIH e o que é a SIDA?

Quando falamos de infeção por VIH, referimo-nos à condição de estar infetado pelo vírus da imunodeficiência humana (VIH). SIDA significa síndrome de imunodeficiência humana adquirida e é causada pelo VIH, tratando-se da fase mais avançada da infeção, em que o sistema imunitário se encontra muito comprometido. 

Ainda de acordo com os dados oficiais, é nas grandes cidades que se regista um maior número de casos da doença. Qual a sua prevalência e quais as faixas etárias mais atingidas?

No ano de 2017, a área metropolitana de Lisboa registou uma taxa de 17.4 novos casos por 100.000 habitantes (a taxa nacional é de 10.4 novos casos por 100.000 habitantes), representando 46.4% dos novos diagnósticos de infeção por VIH. Nos últimos cinco anos, seis municípios da área metropolitana de Lisboa, Porto e Portimão estão entre os concelhos do país com taxas mais elevadas. O conhecimento destas diferenças territoriais permitirá uma melhor adequação das medidas a adotar, como é o caso da estratégia “Cidades na via rápida para acabar com a epidemia de VIH”. 

A idade mediana ao diagnóstico foi de 39 anos. A taxa mais elevada de novos diagnósticos foi observada no grupo etário dos 25 aos 29 anos (24.8 casos por 100.000 habitantes). É importante ressaltar igualmente o facto de que 28% dos novos casos foram registados em indivíduos com idade igual ou superior a 50 anos.

Tendo em conta os meios de transmissão, quais os grupos de risco?

A via de transmissão mais frequente é a sexual, principalmente heterossexual. No entanto, fazendo uma avaliação mais detalhada dos dados relativos aos homens, verifica-se um aumento do número de casos nos homens que fazem sexo com homens, representando a maioria dos novos diagnósticos no sexo masculino.

Simultaneamente, também a proporção de novos diagnósticos de infeção VIH em indivíduos com idade igual ou superior a 50 anos tem vindo a aumentar e, na maioria das situações, com critérios de diagnóstico tardio (doença avançada e/ou sistema imunitário gravemente comprometido).

Relativamente às suas manifestações clínicas, e tendo em conta que esta infeção é muitas vezes assintomática ou apresenta sintomas que facilmente se confundem com outras patologias, a que sinais devemos estar atentos?

Esta infeção pode não apresentar sintomas quer na sua aquisição, quer durante os primeiros anos. Os sintomas, quando surgem, podem ser inespecíficos, como uma gripe, e comuns a muitas outras doenças, como o cancro. O teste de VIH deve ser sempre abordado com a mesma normalidade com que se abordam outros testes laboratoriais. 

Esta particularidade pode ajudar a explicar o facto de muitos casos serem diagnosticados tardiamente?

A ausência de sintomas ou a presença de sintomas ligeiros e inespecíficos podem dificultar um diagnóstico precoce. No entanto, o reconhecimento de comportamentos de risco e a predisposição para a realização do teste, quer por parte dos doentes, quer por parte dos profissionais que os acompanham, poderá constituir um dos passos mais importantes para um diagnóstico atempado.

Os diagnósticos realizados tardiamente, para além das potenciais implicações para o próprio doente, têm repercussão do ponto de vista da saúde pública ao perpetuar a cadeia de transmissão.

Na sua opinião, o acesso ao teste rápido de diagnóstico nas farmácias comunitárias, por exemplo, pode ajudar a contrariar esta tendência? Qual a importância desta medida?

Todas as medidas que promovam a realização de mais rastreios e, por conseguinte, também aumentar a capacidade de diagnóstico são positivas, sempre e quando assentem em estratégias robustas de referenciação adequada para o Serviço Nacional de Saúde, em caso de reatividade.

Quanto ao seu prognóstico, quais as principais complicações associadas à infeção por VIH?

Hoje em dia, em virtude de todos os progressos científicos logrados, a infeção VIH é considerada uma doença crónica. A terapêutica antiretrovírica é altamente eficaz e bem tolerada, permitindo o controlo da doença. Atualmente, o principal foco clínico é a prevenção e gestão de comorbilidades, na sua maioria decorrentes da própria idade e da terapêutica: problemas cardiovasculares, renais, ósseos e do sistema nervoso central. 

Em que consiste o tratamento e que novidades têm existido relativamente a esta matéria?

A investigação médica na infeção por VIH é uma das áreas de maior produção científica nas últimas décadas. Neste momento, dispomos de fármacos altamente eficazes, pouco tóxicos e simples de tomar.

Por fim, que mitos persistem relativamente à infeção por VIH e SIDA que considera importante clarificar? E que mensagem gostaria de deixar, no âmbito do Dia Mundial da Luta Contra SIDA?

Os mitos só poderão ser combatidos com mais e melhor informação, para todos, profissionais e comunidade em geral. É necessário continuar a apostar em maior literacia em saúde.

O VIH pode ser transmitido através de uma relação sexual, mas não se transmite através de um beijo ou um abraço ou por partilhar o mesmo copo. Não se passa através do ar, nem por um aperto de mão. Todos podemos e devemos contribuir para a desmistificação da doença.

As estratégias de prevenção, rastreio e diagnóstico, sempre numa abordagem combinada, são cruciais para o controlo da epidemia. Mas, depois de feito o diagnóstico, o nosso foco recai no doente que requer o nosso maior cuidado. A terapêutica antiretrovírica é altamente eficaz, mas há vida para além do VIH e devemos procurar o quarto “90” – viver com qualidade de vida.  

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
Foto: 
Nuno Coimbra