Crise económica e insegurança

Dispara o número de médicos brasileiros a vir para Portugal

Em apenas meio ano, e só na região sul, já houve quase tantas inscrições na Ordem como em todo o ano de 2017 no total do país. Quase todos admitem querer fugir à crise económica e à insegurança no Brasil.

O número de médicos brasileiros a querer trabalhar em Portugal disparou nos últimos tempos e promete subir ainda mais nos próximos meses, porque todas as semanas chegam novos pedidos de inscrição à Ordem. E tanto são jovens a dar os primeiros passos na profissão como especialistas já com 60 anos e no topo da carreira, sem um padrão que os una a não ser, na maioria dos casos, a vontade de fugir à crise económica e à insegurança das maiores cidades do Brasil. Mesmo sabendo que vão ficar a ganhar menos com a mudança.

Se no ano passado já tivemos 57 novas inscrições na Ordem dos Médicos de profissionais vindos do Brasil - sensivelmente o mesmo número do ano anterior -, quando em 2013 esse número era de apenas sete, 2018 caminha já para bater largamente o recorde da última década, a fazer lembrar vagas de imigração anteriores, como a dos dentistas no final do século passado: em apenas meio ano, e só na região sul, já houve quase tantas inscrições como em todo o ano de 2017 no total do país. Com a reeleição de Dilma Rousseff, em 2014, e o início da crise política e económica, muitos médicos brasileiros tentaram certificar diplomas nas nossas faculdades, para terem uma rede de segurança. Um plano B que agora passou a ser A para dezenas deles.

O Brasil tem cerca de 450 mil médicos, "se o país desestabiliza e se se percebe que é fácil estabelecerem-se em Portugal, vamos ter a imigração destes profissionais a subir muito", reconhece o presidente da secção sul da Ordem dos Médicos, que todas as semanas recebe novos processos de inscrição. Alexandre Valentim Lourenço aponta um problema de "pressão no nosso sistema" que pode resultar desta vaga de entradas na saúde. "É que já não temos onde colocar os nossos próprios médicos."

Neste momento, há cerca de 600 médicos brasileiros a trabalhar em Portugal - contingente a aproximar-se do de espanhóis, que tem vindo a cair -, mas esse número vai "explodir ainda mais nos próximos tempo", garante ao Diário de Notícias um advogado que representa uma dúzia destes profissionais. Carteira de clientes que a curto prazo passará para vinte. "Há um grande interesse dos brasileiros, e não apenas médicos, em vir para Portugal para ter uma vida mais tranquila, mesmo abdicando de melhores salários."

Basta uma breve pesquisa na internet para perceber que essa é uma das questões que mais preocupam os profissionais de saúde brasileiros em relação à solução portuguesa. Essa e as dificuldades burocráticas para verem os seus cursos reconhecidos no nosso país, que implicam provas nas faculdades. E as diferenças nas remunerações podem mesmo ser gritantes. Um médico pode ganhar pelo menos 30 mil reais (cerca de 6700 euros) por mês no Brasil, acumulando funções no privado - que, através dos seguros de saúde, tem um grande peso no maior país da América do Sul -, mas um profissional altamente especializado pode ganhar mais de cem mil reais (acima de 22 mil euros). Em Portugal, um assistente graduado sénior que tenha um horário de 35 horas em dedicação exclusiva ganha cerca de 4300 euros brutos, enquanto um interno não chega aos dois mil. E essa é precisamente a situação de muitos médicos que imigraram para o nosso país: tiveram de começar praticamente do zero.

"Sem especialidade não é fácil"
Só a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo tem três internos brasileiros a trabalhar nos seus centros de saúde, que se juntaram a outros três clínicos já na carreira médica. Embora já esteja no país há quase dez anos, Alessandra Pinheiro é uma dessas internas. Médica de clínica geral no Rio Grande do Sul, veio para Portugal em 2009. Ao argumento da segurança juntou o do clima e a proximidade da mãe, que já tinha cá residência. Durante quatro anos trabalhou como tarefeira em centros de saúde da região de Lisboa, o que só reforçou a vontade de se tornar médica de família. "Percebi que precisava de especialização em saúde infantil, em saúde materna, e decidi fazer a prova de seriação." Feito o ano comum em Beja, em 2013, entrou no internato no Agrupamento de Centros de Saúde Arrábida, em Setúbal, e por lá quer ficar quando se tornar especialista em Medicina Geral e Familiar, em outubro.

No entanto, segundo Alexandre Valentim Lourenço, estes profissionais nem vêm preferencialmente para o Serviço Nacional de Saúde e são mais absorvidos por unidades privadas ou PPP. "São boa aposta, porque vêm sem família, sem amigos, dedicam-se em exclusivo ao trabalho", considera o presidente da Ordem do Sul, que afirma ainda que muitos olham para Portugal como uma porta de entrada para depois irem para outros países europeus. Só num dos principais hospitais em parceria público-privada do país há três médicos brasileiros em vias de reforçar os serviços, "o que prova que há de facto um mercado nesta área", reconhece fonte de um dos maiores grupos privados de saúde.

Mas os casos multiplicam-se no país. Luísa Medeiros também teve de fazer tábua rasa da sua especialidade para mudar de vida. À beira de fazer 36 anos, formada em 2007 no Rio de Janeiro, Luísa é agora interna do primeiro ano em Medicina Física e Reabilitação em Alcoitão. No Brasil era especialista em otorrino, com internato feito em São Paulo, mas cedo percebeu que não queria ficar por aí. Como o marido é francês, decidiu em 2015 vir para a Europa. Faz até questão de sublinhar que as razões que a trouxeram para Portugal não foram sociais ou políticas, embora saiba que essa é a motivação da maioria dos profissionais que deixam o Brasil. "Ao chegar percebi que vida de médico sem especialidade não é fácil, a oferta não é boa, e decidi submeter-me à prova nacional de seriação e ao muito temido Harrison."

Candidatou-se a Medicina Física e Reabilitação e entrou na primeira opção, no Centro de Alcoitão, onde é uma "muito feliz" interna de primeiro ano. Mesmo a ganhar muito menos do que no Brasil. "Se não estivesse com o meu marido, e só com o que ganho como interna, 1250 euros líquidos, apenas conseguia alugar um quarto em Lisboa." Os índices de preços ao consumidor apresentam os mesmos valores nos dois países (1,4%), mas a inflação é significativamente maior nas áreas da habitação (2,6%) e na alimentação (2,2%) no Brasil (dados de junho do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em comparação com o nosso país (0,6% e 1,5%, respetivamente, segundo os dados da Pordata para o ano passado). "E Portugal está a crescer economicamente, acredito que as condições para os médicos também vão melhorar." Aos muitos colegas que todas as semanas lhe pedem conselhos sobre as condições em Portugal, Luísa deixa dois tipos de mensagens: incentiva a vir os que estão em início de carreira; mas desaconselha os que já estão no topo, porque a inscrição na especialidade é muito difícil.

Uma realidade reconhecida pelo presidente da secção sul da Ordem dos Médicos. "Os médicos no topo da carreira levantam-nos outros problemas quando querem inscrever-se numa especialidade, porque o sistema de especialização lá é diferente do nosso. Há áreas em que até há ótimos profissionais, como cirurgiões, mas outras em que não, e já tivemos processos que foram rejeitados e acabaram em tribunal, porque os candidatos nos processam." Alguns destes casos arrastam-se mais de dez anos em tribunal e o próprio processo de revalidação da especialidade não tem um prazo. Há relatos de esperas de três anos pela decisão da Ordem, explica um representante destes médicos, que ataca o "corporativismo da Ordem".

Do Rio até Beja
Lúcio Silva, 42 anos, foi daqueles que começaram praticamente do zero em Portugal. Mais de dez anos depois de ter acabado a formação em Psiquiatria no Brasil, resolveu cruzar fronteiras em 2016. Desde logo porque a mulher queria fazer doutoramento em Direito e depois porque "não estava satisfeito com a insegurança no Rio de Janeiro", que lhe ensombrava os planos de ter filhos.

Fez a certificação da licenciatura, inscreveu-se na Ordem e fez o pedido de autonomia. Submeteu-se à prova de seriação e está no primeiro ano de internato de Psiquiatria em Beja. "Gosto do Alentejo, já me tinham dito que era quente como a minha terra, Salvador. Mas as comidas são um pouco pesadas", ri. Só os salários dão menos vontade de sorrir: "São demasiado baixos tendo em conta as rendas que estão a praticar-se, e nós temos de manter uma casa em Lisboa e outra em Beja."

Processo pode demorar um ano
Um médico brasileiro que queira vir para Portugal pode contar gastar cerca de 800 euros e esperar um ano, entre a equivalência de diplomas numa universidade portuguesa e a inscrição na Ordem dos Médicos: seis meses para fazer a certificação e ter os resultados numa faculdade de Medicina (que pode custar pelo menos 600 euros); a Ordem dos Médicos tem depois três para deferir ou indeferir os pedidos de inscrição (210 euros de joia de inscrição); mais dois meses para decidir sobre a autorização de autonomia clínica. Já a revalidação da especialidade não tem um prazo. As faculdades têm tentado criar planos comuns para uniformizar as provas de revalidação de diplomas. Neste ano a janela para inscrição nestes exames deverá ser no último trimestre.

Fonte: 
Diário de Notícias Online
Nota: 
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