Saiba porque é importante vacinar

Vacinas: falsas contraindicações colocam em causa o processo de imunização

Atualizado: 
23/11/2018 - 11:34
A vacinação é um dos meios mais baratos e eficazes de prevenir doenças infeciosas graves. No entanto, nos últimos anos, muitos são os que olham com desconfiança para esta medida, sustentando a sua opinião em factos com poucas ou nenhumas bases científicas mas que muito têm contribuído para o dar força ao atual movimento antivacinas. Para o ajudarmos a compreender a importância deste tema, o Atlas da Saúde esteve à conversa com a pediatra Ana Leça, da Comissão Técnica de Vacinação, para tirar todas as dúvidas sobre o que são e para que servem as vacinas.

Segundo dados da Organização Mundial da Saúde, as vacinas evitaram pelo menos 10 milhões de mortes entre 2010 e 2015, e protegeram muitos milhões de pessoas de doenças como o sarampo, a pneumonia ou a tosse convulsa. Para compreendermos a sua importância, o que é a vacina e qual o seu papel no processo de imunização?

Vacina é um produto preparado obtido a partir de microrganismos (do todo, de componentes estruturais ou dos seus genes), com propriedades antigénicas, suscitando no vacinado uma resposta imunitária protetora (imunização) contra a doença provocada pelo microrganismo correspondente.

A ação das vacinas assenta na ativação dos mecanismos imunológicos protetores do receptor da vacina, com estimulação da formação de anticorpos, da imunidade celular, ou de ambos. Os anticorpos produzidos podem inativar toxinas, neutralizar vírus, prevenir a sua ligação a receptores celulares, facilitar a fagocitose e destruição bacteriana, interagir com o complemento promovendo a lise bacteriana e prevenir a sua adesão às superfícies das mucosas.

A avaliação da resposta imunológica à maioria das vacinas inclui a medição do nível de anticorpos séricos. Embora a deteção de determinado nível sérico se possa considerar protetora e indique imunidade após vacinação, a diminuição ao longo do tempo não significa necessariamente suscetibilidade à doença respetiva. Com efeito, a maioria das vacinas induzem memória imunológica, pelo que uma nova administração do antigénio ou uma resposta anamnéstica após exposição garantam proteção contra a doença ou pelo menos proteção contra a doença grave.

A palavra “vacina” deriva de vacínia, doença vesiculosa dos bovinos, também chamada varíola das vacas (cowpox), provocada por um vírus do mesmo grupo do vírus da varíola humana (smallpox). As pessoas com história de vacínia (nomeadamente as leiteiras) não eram contagiadas pela varíola. Com base nesta constatação, em 1796, Edward Jenner inoculou James Phipps, de 8 anos (filho do seu jardineiro) com material das lesões de vacínia das mãos da Sarah Nelmes (leiteira), o que desencadeou uma reação febril transitória na criança. Cerca de dois meses mais tarde Jenner voltou a inocular James Phips com material de lesões de varíola não tendo a criança desenvolvido doença. Jenner demonstrou assim o papel protetor do vírus mais “fraco”, descobrindo a primeira vacina. Esta experiência seria atualmente inaceitável por questões éticas.

Cerca de 80 anos depois, Louis Pasteur verificou que a inoculação de microrganismos previamente expostos ao ar ou ao tratamento químico provocava uma doença atenuada.

Nasceu assim um novo conceito de prevenção de doenças infeciosas, fundamentada na capacidade natural de resposta ou de reação do organismo à inoculação de um agente similar ao agente microbiano “agressor” ou a um “produto” seu derivado, resposta ou reação que conferem proteção por um período habitualmente longo.

Inicialmente, o desenvolvimento das vacinas ocorreu de forma quase “empírica”, com grande desconhecimento dos complexos mecanismos imunológicos do agente e do “hospedeiro” subjacentes à proteção conferida pelas vacinas.

A compreensão cada vez maior da resposta imunológica e o desenvolvimento da biotecnologia têm permitido um aperfeiçoamento constante, com vacinas cada vez mais seguras e eficazes. Atualmente está em franco desenvolvimento a pesquisa sobre a administração das vacinas, no sentido de ultrapassar a necessidade de seringa e agulha, que cada vez mais são um obstáculo à adesão aos programas de vacinação. A via intranasal já é usada numa vacina viva contra a gripe, e outros sistemas encontram-se em investigação, nomeadamente a via transcutânea, a via oral e por aerossóis.

Porque é importante cumprir os intervalos de tempo corretos entre administração de doses e de vacinas?

O esquema de vacinação recomendado no PNV tem como objetivo obter a melhor proteção, na idade mais adequada e o mais precocemente possível. A maior parte das vacinas requer a administração de várias doses para conferir proteção adequada, devendo respeitar-se os esquemas vacinais recomendados no PNV.

Há regras em vacinação, nomeadamente as idades mínimas para administração de determinadas vacinas e os intervalos mínimos entre as doses de cada vacina.

Em relação às vacinas do PNV, intervalos superiores aos recomendados entre doses da mesma vacina não reduzem a proteção final contra a doença. No entanto, até ao cumprimento do esquema, a pessoa pode não estar completamente protegida. A interrupção do esquema vacinal PNV apenas requer que este seja completado, independentemente do tempo decorrido desde a administração da última dose.

A administração de vacinas antes da idade mínima recomendada e/ou com intervalos inferiores aos mínimos aconselhados pode diminuir a resposta imunológica. Nestes casos, as doses administradas não são consideradas válidas e terão de ser repetidas.

Que tipos de vacinas existem atualmente?

Atualmente existem os seguintes tipos de vacinas:

  1. As vacinas vivas (atenuadas) contêm estirpes modificadas de bactérias ou vírus que foram enfraquecidas (atenuadas) por passagens por um hospedeiro não natural ou por um meio desfavorável. Mantêm a capacidade de se multiplicar no hospedeiro e induzem uma forte resposta imunitária. Como exemplos de vacinas vivas citam-se: BCG, VASPR (vacina contra sarampo, parotidite epidémica e rubéola), vacina contra a varicela;
  2. As vacinas inativadas - Utilizam microrganismos inativados (mortos), de que são exemplos a vacina inativada contra a poliomielite, vacina contra a hepatite A;
  3. Fracções ou subunidades do agente infeccioso de que são exemplos a vacina acelular contra a tosse convulsa, a vacina contra o papiloma vírus humano (HPV), a vacina contra a hepatite B (VHB) ou algumas vacinas contra a gripe;
  4. Os toxoides induzem proteção através da produção de anticorpos que inativam as toxinas bacterianas. É o caso da vacina contra o tétano e a difteria;
  5. As vacinas conjugadas utilizam os polissacáridos da cápsula bacteriana em ligação com proteínas, o que permite serem imunogénicas em crianças de idade inferior a 2 anos. São exemplos as vacinas conjugadas contra o Haemophilus influenza b, o pneumococo e o meningococo do serogrupoC;
  6. As vacinas obtidas por vacinologia reversa utilizam a técnica de sequenciação do genoma com escolha dos antigénios mais adequados para a vacina. Na primeira vacina comercializada contra o meningococo do serogrupo B (Bexsero Ò) é utilizada esta técnica.
  7.  As vacinas combinadas incorporam simultaneamente vários antigénios (independentemente de se tratar de vacinas vivas ou inativadas). As primeiras vacinas utilizadas com estas características foram a DTP (vacina contra difteria, tétano e tosse convulsa) e, muito mais tarde (década de 80) a VASPR (vacina contra sarampo, parotidite epidémica e rubéola). Posteriormente as vacinas tetra (DTPa-Hib, DTPa-VIP), penta (DTPa-VIP/Hib) e hexavalentes (DTPa-VIP-VHB/Hib) permitiram reduzir significativamente o número de injeções nos programas de vacinação de rotina, contribuindo para maior humanização e adesão, possibilitando a introdução de maior número de antigénios nos programas de vacinação e garantindo simultaneamente a segurança e eficácia de todos os antigénios que compõem estas vacinas.

As vacinas apresentam contraindicações ou reações adversas? Quais as mais frequentes?

As contraindicações à vacinação são raras, muitas vezes temporárias, e referentes a vacinas específicas e situações específicas, como por exemplo: pessoas com deficiências imunitárias graves não devem ser vacinadas com vacinas vivas; grávidas não devem ser vacinadas com vacinas vivas, pois configuram um risco teórico para o feto; filhos de mães VIH positivas não devem ser vacinados com BCG até ser completamente excluída a infeção VIH no bebé.

As falsas contraindicações são muitas vezes motivo de adiamento da vacinação. Estas oportunidades perdidas de vacinação prolongam o período de suscetibilidade às doenças evitáveis pela vacinação. Alguns exemplos de falsas contraindicações são: reações locais, ligeiras a moderadas, a uma dose anterior da vacina a administrar; doença ligeira aguda, com ou sem febre (exemplo: infeção das vias respiratórias superiores, diarreia); doença neurológica estabilizada/não evolutiva, como a paralisia cerebral; criança em aleitamento materno ou mulher a amamentar; convivente com mulher grávida. Não se deve adiar a vacina VASPR (contra o sarampo, parotidite epidémica e rubéola) em crianças, que, na idade recomendada (aos 12 meses), ainda não ingeriram ovo.

Se bem que a quase totalidade das reações adversas associados às vacinas sejam de importância minor, predominantemente reações locais e autolimitadas, há referência a eventos graves ocorrendo muito raramente, pelo que a notificação desses eventos é muito importante. A avaliação atempada permite distinguir entre verdadeiras reações às vacinas e eventos coincidentes ou temporalmente associados, mas não relacionados com a vacinação.

A notificação das reações adversas às vacinas é dirigida ao Sistema Nacional de Farmacovigilância, coordenado pelo INFARMED, que monitoriza a segurança dos medicamentos e implementa medidas de segurança sempre que necessário. Para notificar uma reação adversa basta que exista uma suspeita e qualquer pessoa pode fazê-lo, preenchendo o formulário do Portal RAM em: http://www.infarmed.pt/web/infarmed/submissaoram

Que vacinas fazem parte do Programa Nacional de Vacinação?

O atual Programa Nacional de Vacinação (2017) confere proteção contra 11 doenças: difteria, tétano, tosse convulsa, poliomielite, hepatite B, doença invasiva por Haemophilus influenzae do serotipo b, sarampo, parotidite epidémica, rubéola, Neisseria meningitidis do serogrupo C, Streptococcus pneumoniae (13 serotipos) e Vírus do Papiloma Humano (HPV) para raparigas. A vacina contra formas graves de tuberculose (BCG) passou a ser administrada apenas aos grupos de risco acrescido de doença.

O Programa Nacional de Vacinação é um programa:

Universal – aplica-se a todas as pessoas presentes em Portugal;

Gratuito para o utilizador – é financiado pelo orçamento do Estado;

As vacinas que integram o PNV - são eficazes e seguras e da sua aplicação obtêm-se os maiores ganhos em saúde. Os ganhos em saúde são o critério principal de inclusão no PNV, e a sua demonstração explica o hiato que se verifica entre a entrada de determinadas vacinas no circuito comercial e a sua inclusão no PNV;

Esquema/calendário vacinal - as vacinas aplicam-se segundo um Esquema Recomendado que constitui uma receita universal, não necessitando de prescrição médica. Um dos objetivos do PNV é obter a melhor proteção, na idade mais adequada e o mais precocemente possível, contra o maior número possível de doenças, com um esquema de primovacinação que permite, no primeiro ano de vida, a proteção contra a maioria das doenças-alvo do programa;

O PNV é um programa dinâmico. Desde 1965 houve atualização progressiva dos esquemas vacinais, de acordo com a evidência científica e a realidade epidemiológica assim como a introdução progressiva de novas e melhores vacinas, determinada por fatores epidemiológicos e pela evolução tecnológica. Durante os mais de 50 anos da sua existência foi apenas retirada a vacina contra a varíola, após a erradicação da doença (OMS, 1980) e a BCG passou, em 2016, por motivos epidemiológicos, a ser recomendada apenas a grupos de risco.

O PNV é um programa submetido a avaliação anual, interna regional e nacional, e externa internacional (ECDC e OMS).

Que outras vacinas existem, fora do Programa, cuja administração considera importante? Porquê?

A entrada de uma vacina no PNV tem sempre subjacente os ganhos em saúde. O processo de tomada de decisão é bastante complexo, suportado por forte referencial científico, epidemiológico, técnico e normativo e ainda critérios de custo-efetividade e de aplicabilidade no terreno.

A prescrição individual baseia-se em provas de segurança e eficácia, que todas as vacinas já demonstraram quando são comercializadas, e em critérios individuais avaliados pelo médico assistente.

A inclusão de uma vacina no PNV implica um tempo de avaliação mais ou menos longo para comprovar os benefícios dessa vacina para a saúde pública e, quando possível, a quantificação dos ganhos em saúde.

As vacinas contra Haemophilus influenzae b (Hib), Neisseria meningitidis C (MenC), vírus do papiloma humano (HPV), Streptococcus pneumoniae (Pn13) são exemplos de vacinas que estiveram no circuito comercial antes de serem incluídas no PNV.

Outras vacinas são oficialmente recomendadas e gratuitas apenas para grupos de risco acrescido ou em situações especiais: foi o caso da vacina contra a hepatite B para grupos de risco antes da sua inclusão no PNV; é o caso, por exemplo, da vacina contra a hepatite A em caso de surto e das vacinas contra meningococo ACWY e contra meningococo B para doentes com asplenia e defeitos do complemento.

A vacina contra a gripe é também gratuita para alguns grupos de doentes ou situações sociais, sendo que os abrangidos pela gratuitidade têm aumentado progressivamente ao longo dos anos.

O PNV é prioritário em relação às vacinas extra PNV.

Não se demonstrou ainda ganhos em saúde que justifiquem a inclusão da vacina contra rotavírus no PNV, no entanto é uma vacina eficaz e segura do ponto de vista individual. Não existe justificação epidemiológica atual para a vacinação universal contra a hepatite A, apenas recomendada em situações de surto ou de viagem.

De salientar que a epidemiologia das doenças é dinâmica e tem de ser constantemente avaliada no sentido de perceber a pertinência de novas medidas. É o caso da doença meningocócica, nomeadamente no que se refere à vacina contra meningococo B e contra meningococo ACWY (atualmente apenas recomendada em alguns grupos de risco e algumas situações de viagem), assim como a avaliação do esquema vacinal contra meningoco C. 

Que mensagem gostaria de deixar?

O PNV é um programa efetivo com grande impacto na Saúde Pública. Entre a década anterior ao PNV (1956-1965) e a década de 2006-2015 houve cerca de menos 40 000 casos de doença e 5 200 óbitos por tétano, difteria, tosse convulsa e poliomielite. O PNV foi determinante na diminuição da taxa de mortalidade infantil. O PNV consolidou a erradicação da varíola em Portugal; permitiu eliminar a poliomielite, a difteria, o sarampo autóctone, a rubéola e o tétano neonatal; permitiu controlar o tétano, a doença invasiva por N. meningitidis C e H. influenzae b, hepatite B, parotidite epidémica, tosse convulsa e formas graves de tuberculose. No futuro é expectável o controlo do cancro do colo do útero (HPV) e da doença por pneumococo. O sucesso alcançado pelo PNV deve-se à forma como foi concebido, planeado, implementado e gerido ao longo do tempo, ao empenho dos profissionais e à adesão dos cidadãos.

O PNV implica um processo de decisão de complexidade cada vez maior, decorrente do desenvolvimento científico e tecnológico com disponibilidade de cada vez mais vacinas e de alterações do padrão epidemiológico das doenças.

É importante assegurar a continuidade e aceitabilidade do PNV num contexto de crescente resistência à utilização de vacinas, destinadas a doenças eliminadas ou controladas (pela vacinação), não já percecionadas como risco. Mesmo os pais que vacinam podem ter dúvidas e medos, o que exige uma formação apurada dos profissionais nesta matéria, de modo a prestarem os esclarecimentos solicitados.

É preciso garantir a capacidade de resposta dos serviços de modo a cumprir um dos requisitos para o sucesso do PNV: “não perder oportunidades de vacinação”.

O PNV representa um direito individual de proteção mas também um dever de contribuir para a proteção da sociedade, reforçando a imunidade de grupo, com proteção dos que, por não terem idade ou apresentarem contraindicações clínicas, não podem ser vacinados.

Finalmente, os programas de saúde e as instituições não trabalham sozinhos e a sociedade civil é um parceiro cada vez mais importante. Tal como define o Programa Nacional de Saúde “O cidadão deve ser capacitado para assumir a responsabilidade de pugnar pela defesa da sua saúde individual e da saúde coletiva. Para exercê-la, o cidadão tem de estar informado e interiorizar tal informação ao longo de todo o ciclo de vida”.

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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