Opinião

Sarampo: movimento antivacinas compromete a imunidade de grupo

Atualizado: 
17/12/2018 - 16:43
Por que razão países europeus com boa capacidade de vacinação, de vigilância epidemiológica e de diagnóstico, têm comprometido o objetivo, sucessivamente adiado, de eliminação do sarampo na Região Europeia?

Apesar de o sarampo reunir as condições para erradicação, pelas características do vírus incluindo a sua transmissão exclusivamente inter-humana e pela disponibilidade de uma vacina eficaz, segura e economicamente acessível, temos assistido ao ressurgimento de epidemias que põem em risco os sucessos já conseguidos por países como Portugal.

O sarampo é uma das infeções mais contagiosas, ou seja, com maior capacidade de gerar casos secundários o que exige elevadas coberturas vacinais para interromper a circulação do vírus e controlar a doença na comunidade através da imunidade de grupo. É, habitualmente, benigno mas pode ser grave e mesmo letal.

Em 1980, antes do uso generalizado da vacina, estimou-se, a nível mundial, 2,6 milhões de óbitos por sarampo. Em 1998, a OMS e UNICEF implementaram medidas e recomendações para a eliminação da doença. Entre 2000 e 2008, a redução da letalidade foi de 75%, contribuindo para 23% da redução da mortalidade infantil (todas as causas) entre 1980 e 2008.

Então, por que razão países europeus com boa capacidade de vacinação, de vigilância epidemiológica e de diagnóstico, têm comprometido o objetivo, sucessivamente adiado, de eliminação do sarampo na Região Europeia?

Verifica-se desde 1998, em alguns países, uma menor confiança na vacina VASPR, após a sua indevida e fraudulenta associação ao aparecimento de colite e de autismo. A cobertura vacinal baixou e os casos de sarampo aumentaram mesmo depois dos estudos que excluíram definitivamente aquela associação.

Apesar dos surtos, a situação epidemiológica atual não é comparável à da era pré- vacinal. Muitos profissionais de saúde na Europa nunca lidaram com um caso de sarampo, o que pode atrasar o diagnóstico, facilitar o contágio, protelar o rastreio dos contactos e a implementação das medidas de controlo. Nesse sentido, os casos que ocorreram em Portugal permitiram a aquisição de maior suspeita diagnóstica para o sarampo.

As últimas grandes epidemias de sarampo em Portugal ocorreram em 1987, com cerca de 12.000 casos notificados e 40 óbitos, e em 1993/1994, com cerca de 3.000 casos notificados. Desde 2003 que não existe sarampo endémico em Portugal. A boa situação epidemiológica portuguesa deve-se a uma consistente aplicação do Programa Nacional de Vacinação (PNV) com coberturas vacinais >95% para as duas doses de VASPR, associada a campanhas e atividades adicionais de vacinação sempre que adequado. Esta taxa elevada de vacinação gerou imunidade de grupo, com proteção adicional dos não vacinados, nomeadamente as crianças de idade inferior a 12 meses, idade em que é recomendada a 1ª dose.

Mas mesmo países com grande investimento na vacinação, com coberturas vacinais elevadas e com eliminação do sarampo certificada pela OMS, podem ter surtos originados em casos importados, como aconteceu em Portugal em 2017 e 2018. Em Portugal verificou-se que cada caso em pessoas não vacinadas gerou um número mínimo de casos, demonstrando que a imunidade da população é elevada. Em populações não vacinadas cada caso de sarampo pode gerar até 18 casos secundários. Os casos que ocorreram em adultos vacinados (que cresceram numa sociedade vacinada e sem doença, ou seja, sem os reforços naturais por contacto com o vírus) foram clinicamente benignos e não geraram cadeias de transmissão, demonstrando que a vacina protege contra as formas graves de doença e tem grande valor em Saúde Pública.

Também os meios de comunicação social e a população acompanharam a evolução da situação, com a maioria das pessoas a defender a vacinação concretizando um dos objetivos estratégicos da OMS 2012: “Que os indivíduos e as comunidades entendam o valor das vacinas e as procurem como um direito e com responsabilidade”.

O movimento antivacinas: quais os "fundamentos"?

As dinâmicas subjacentes à hesitação em vacinar estão intimamente ligadas às estruturas sociais, às representações e às mentalidades. Os movimentos e posturas antivacinais existem desde a 1ª vacina, a vacina contra a varíola. E, no entanto, a varíola foi a 1ª doença a ser erradicada, o que por muitos é considerado o feito mais importante da história da Medicina e a “prova inequívoca do poder da ação coletiva na melhoria da condição humana” (Margaret Chan, Diretora da OMS).

Em Portugal, as coberturas vacinais elevadas indicam que a vacinação é muito bem aceite, mas mesmo alguns dos pais que vacinam os filhos têm dúvidas e têm medos. Devido ao controlo das doenças, decorrente do sucesso da vacinação, esta não é percebida como uma medida preventiva necessária e a sua segurança é questionada. Surgem mitos e inversão da percepção de risco com mais medo das vacinas do que das doenças.

O artigo de Andrew Wakefield, publicado na revista Lancet em 1998, associava a vacina VASPR a colite e autismo, tendo tido ampla divulgação. Em consequência a cobertura vacinal desceu e, em 2003, começaram a registar-se surtos de sarampo no Reino Unido, que rapidamente se estenderam a outros países da Europa. Em 2004 demonstrou-se que o artigo padecia de erros graves na amostra e na análise estatística; muitos estudos posteriores não demonstraram a associação. Em 2004 o Lancet retirou o artigo dos arquivos e em 2010 Wakefield foi excluído do General Medical Council. Em 2013, na região europeia da OMS houve 29.000 casos de sarampo, a maioria dos quais em pessoas não vacinadas.

Na Europa os objetivos de eliminação do sarampo têm sido sucessivamente adiados, havendo muitos países em que a doença ainda é endémica como, por exemplo, a Bélgica, a França, a Itália, a Roménia, a Ucrânia.

A importância da internet é cada vez maior. A liderança dos grupos antivacinais nos países ocidentais é feita por pessoas diferenciadas, classe média ou alta, pais de crianças “lesadas” pelas vacinas, exigindo compensação da indústria ou do Estado ou ainda praticantes de terapêuticas não convencionais. Têm uma estratégia de marketing agressiva através da Internet em que se assumem como não sendo antivacinas, mas a favor de “vacinas seguras”, “decisão informada”, “vacinas verdes” e utilizam nomes neutros, que parecem websites de informação sobre vacinas. Nos sites antivacinais apela-se à emoção, com narrativas que são extremamente poderosas porque causam uma enorme sensação de ameaça pelas vacinas. Referem-se alianças ocultas entre companhias farmacêuticas e Estados (teoria da conspiração). Verifica-se a tendência, muito reforçada pela internet, para atribuir qualquer evento após a vacinação à(s) vacina(s) recebida(s), por exemplo a morte súbita do lactente ou doenças neurológicas que se manifestam no 1º ano de vida em que o timing da primo vacinação permite a coincidência temporal que não é definitivamente uma associação causal.

Assistiu-se também a um aumento, desejado, da literacia em saúde que levou a uma alteração das relações de poder médico/enfermeiro-doente/utente e trouxe novos desafios: os profissionais de saúde deixaram de ser os únicos a tomar decisões e os doentes/utentes querem, e bem, ser sujeitos ativos e participar das decisões em saúde.

Neste cenário, é cada vez maior o problema da confiança no sistema que disponibiliza as vacinas, na competência dos serviços e dos profissionais e nas motivações dos decisores sobre as vacinas que são necessárias.

Há que ter em conta influências de contexto, nomeadamente religiosas (calvinistas do Bible-belt da Holanda) ou filosóficas (antroposofia), ambas sem grande expressão em Portugal. Existem também grupos com uma visão particular do mundo no que refere à saúde, em que as pessoas optam pela medicina não convencional, preferem a “imunidade natural” conferida pelos alimentos, defendem que a boa higiene e os hábitos de vida tornam a vacinação desnecessária ou que as doenças evitáveis pela vacinação são necessárias para o desenvolvimento de um sistema imunitário forte. Na verdade, a melhoria da higiene e acesso a água potável controlaram muitas doenças mas não evitam a circulação dos micro-organismos causadores de doenças evitáveis pela vacinação, nomeadamente as que se transmitem por via aérea. E mesmo com boas condições de higiene, interromper ou diminuir a vacinação pode levar ao reaparecimento de doenças evitáveis pela vacinação, como é o caso dos surtos de sarampo em muitos países europeus.

Nas especificidades da vacina ou da vacinação há várias questões a considerar:

A qualidade dos serviços, a acessibilidade à vacinação e a capacidade do cidadão, como a literacia ou o entendimento da língua, têm grande influência na adesão.

O esquema vacinal, com a administração simultânea de múltiplas vacinas tem sido problemático nalguns países, levando a recorrer a esquemas alternativos, o que pode adiar a proteção e comprometer a imunidade de grupo. Mesmo nas pessoas que aderem à vacinação uma dúvida frequente é a sobrecarga do sistema imunitário. No entanto, o PNV atual, com a quantidade de vacinas que o constitui, confere uma carga antigénica menor, comparativamente ao verificado entre 1965 e 1980, apenas com a vacina antivariólica e a vacina de célula completa contra a tosse convulsa.

A segurança das vacinas é também questionada. Ao contrário dos outros medicamentos, destinados a pessoas doentes, as vacinas são aplicadas a pessoas saudáveis para prevenção de doenças, pelo que a tolerância da sociedade às reações adversas, especialmente em lactentes e crianças, é muito baixa. As vacinas são submetidas a avaliações de segurança e eficácia muito rigorosas. O processo inicia-se com o desenvolvimento pré-clínico, que inclui a identificação dos antigénios relevantes para a vacina e testes de eficácia em tubo e em animais de laboratório. Segue-se o desenvolvimento clínico, com testes em humanos, segundo princípios éticos rigorosos e consentimento informado, que decorre em várias fases:

  • Fase I - Ensaios clínicos em pequena escala, para avaliar a segurança (deteção de reações adversas graves) e o tipo de resposta imunológica;
  • Fase II – Ensaios clínicos maiores e mais prolongados (alguns meses até três anos) para avaliar a eficácia e determinar a melhor dose e o número de doses necessárias para que o candidato a vacina seja efetivo e seguro;
  • Fase III – Ensaios clínicos de larga escala que podem durar alguns anos e decorrem geralmente em vários locais diferentes, para avaliar a eficácia e segurança em condições naturais. Em função dos resultados a vacina poderá ser, ou não, licenciada/comercializada;
  • Fase IV – Também chamada vigilância pós-comercialização. Tem por objetivo detetar reações adversas raras que não tenham sido detetadas antes do licenciamento.
Autor: 
Dra. Ana Leça - Pediatra Comissão Técnica de Vacinação
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
Foto: 
ShutterStock