Entrevista

A importância da intervenção psicológica em Cuidados Paliativos

Atualizado: 
26/10/2017 - 09:49
No âmbito do Dia Mundial dos Cuidados Paliativos, que se assinalou a 14 de Outubro, o Atlas da Saúde esteve à conversa com Helena Salazar, psicóloga clínica e membro da Comissão Nacional de Cuidados Paliativos. «Porque assusta a palavra paliativo? Qual a importância da intervenção psicológica em cuidados paliativos?» são algumas das questões que colocámos.

Porque é que a palavra “paliativo” assusta? Que preconceito é este que ainda hoje existe em torno de uma área tão importante?

Assusta e continuará a assustar pois não temos uma cultura de reflexão sobre o morrer e a morte. São medos inerentes a todos nós mas mais ainda quando não nos dedicamos a investir nos nossos próprios processos formativos e de desenvolvimento pessoal. Ter medo da morte é humano. O medo da morte é inerente à condição humana, não o medo da morte mas o medo do morrer, do processo em si. O medo de morrer só, medo de sofrer, medo de não ser respeitado nas suas vontades etc. Por isso quando refletimos sobre a morte temos de olhar seriamente para a vida, aceitá-la e cumprir as tarefas mais importantes que temos para connosco e com os outros: dizer “obrigada”, dizer “desculpa”, dizer “amo-te”, dizer “perdoa-me”, dizer “perdoo-me” e dizer “adeus”.

O que são cuidados paliativos? Podemos afirmar que são apenas cuidados de fim de vida?

A Lei de Bases dos Cuidados Paliativos define Cuidados Paliativos como: “Cuidados ativos, coordenados e globais, prestados por unidades e equipas específicas, em internamento ou no domicílio a doentes em situação de sofrimento decorrente de doença incurável ou grave, em fase avançada e progressiva, assim como às suas famílias, com o principal objetivo de promover o seu bem-estar e a sua qualidade de vida, através da prevenção e alívio do sofrimento físico, psicológico, social e espiritual, com base na identificação precoce e no tratamento rigoroso da dor e outros sintomas físicos, mas também psicossociais e espirituais”.

Os cuidados paliativos são prestados em função das necessidades da pessoa doente e não do diagnóstico e prognóstico. Estando inclusive destinados a pessoas doentes em situações de sofrimento associados muitas vezes a tratamentos com intuito curativo.

São cuidados que se destinam ao acompanhamento de situações complexas que ultrapassam em muito a fase designada por “fim de vida”. Como exemplo temos as doenças em que há tratamento disponível para prolongar a vida, mas o prognóstico é incerto (doença pulmonar obstrutiva crónica, insuficiência cardíaca e outras falências de órgão, fibrose quística e outras), as situações neurológicas não progressivas cuja severidade provoca necessidades clinicas complexas, que são ameaçadoras da vida (acidente vascular cerebral, paralisia cerebral, entre outras).

Considerando a sua experiência, quem sofre mais: doente ou família? De que modo os familiares podem ajudar a atenuar o sofrimento do doente? E qual a importância da intervenção psicológica neste processo?

Sendo o sofrimento humano uma condição universal mas singular a cada um não poderemos nunca quantificar quem sofre mais. Sofremos de formas diferentes mas sofremos. A família será um elemento facilitador na abordagem do sofrimento do doente e eventualmente atenuar este, se a qualidade relacional intrínseca a uma dinâmica familiar assim o permitir. Por mais pequena que seja uma família, são sistemas sociais complexos e como tal a intervenção psicológica nunca é estabelecida de forma isolada mas em equipa interdisciplinar. A nossa intervenção será focada na pessoa doente mas também em vários elementos do sistema familiar. O tema doença poderá ser mais facilmente aceite por todos como porta de entrada para outros temas. Para abordar o sofrimento, temos de avaliar expectativas, avaliar o nível de exaustão familiar, os medos, as culpas, a comunicação intrafamiliar e facilitar as despedidas e as últimas vontades, validando o sofrimento de cada interveniente.

Há ainda a ideia de que os cuidados paliativos são só para os “ricos”. É uma ideia errada?

Mais do que errada é completamente desprovida de sentido ético e clínico. Se o sofrimento é inerente à condição humana, se as vulnerabilidades pessoais não têm idade, género, estado civil nem condição socioeconómica determinada como ter uma resposta a nível da saúde, uma especialidade da saúde só para algumas pessoas? Sabemos que a cobertura nacional destas equipas ainda não é total mas no último ano 2016/2017 muito se tem conquistado. O papel fundamental do Serviço Nacional de Saúde é garantir que haja justiça e equidade de cuidados de saúde. Assim, os cuidados paliativos têm de fazer parte integrante de uma política pública de saúde (recomendações da OMS). 

Neste sentido, quem pode, e como pode, recorrer a estes cuidados?

Todas as pessoas que estejam na condição descrita inicialmente: pessoas em situação de sofrimento decorrente de doença incurável ou grave, em fase avançada e progressiva, independente da idade e local de residência. O acesso poderá ser feito através dos Cuidados Saúde Primários ou pelos Hospitais que sabem onde existem as várias equipas (Equipas Comunitárias de Suporte em Cuidados Paliativos, Equipas Intra-hospitalares de Suporte em Cuidados Paliativos e Unidades de Cuidados Paliativos de Hospitais de Agudos e Unidades de Cuidados Paliativos da Rede Nacional De Cuidados Continuados) e quais os procedimentos para referenciar um doente a qualquer uma das equipas.

Qualquer pessoa poderá saber que equipas temos e a sua localização, através do link http://www.sns.gov.pt/sns/cuidados-paliativos/unidades-de-cuidados-paliativos/ e fazer o contacto no sentido de obter as devidas indicações.

Na sua opinião, o que falta fazer para que os cuidados paliativos passem a ser encarados como um direito básico dos doentes?

Os cuidados paliativos são um direito universal. A acessibilidade ainda não se encontra a 100% pois a cobertura nacional ainda está a ser desenvolvida. Só este ano 2016/2017 foi criada a 1ª Comissão Nacional de Cuidados Paliativos (CNCP) constituída pela Presidente Dr.ª Edna Gonçalves, Dr.ª Fátima Teixeira, Profª Doutora Carla Reigada, Enf.º Ricardo Silva e eu, que fizemos a proposta de regulamentação da Lei de Bases dos Cuidados Paliativos de 2012 e a proposta do Plano Estratégico para o Desenvolvimento dos Cuidados Paliativos para o Biénio 2017/20182. Muito já foi conseguido mas muito há para se fazer mas para serem encarados como um direito básico pelo cidadão e pelos profissionais de saúde, é preciso que o acesso e a informação do que são cuidados alcancem a sociedade como um todo.

Quanto aos profissionais de saúde, acha que devia haver mais formação e informação nesta área? O que falta fazer?

Esta área é um dos Eixos Prioritários definidos pela CNCP no Plano Estratégico:

“a) Desenvolver “centros diferenciados” em Cuidados Paliativos nos hospitais dos grupos de financiamento E e F para potenciar a formação específica (teórica e prática), a nível pré e pós-graduado e capacitar os profissionais de saúde que vão integrar as equipas de CP.

b) Fomentar a formação básica em CP ao nível da formação pré-graduada, incluindo conteúdos de Cuidados Paliativos, com prática clínica, nos planos curriculares de todas as escolas de medicina, enfermagem, psicologia e serviço social.

c) Trabalhar com as ordens/associações profissionais no sentido de definirem perfis de especialistas em CP.

d) Criar o Consórcio de Parceiros Estratégicos na qualificação dos profissionais das equipas de Cuidados Paliativos (ARS, Escolas Superiores de Saúde, APCP, entre outros) http://www.sns.gov.pt/wp-content/uploads/2016/09/Plano-Estratégico-CP_2017-2018-1.pdf

e) Formar os profissionais das equipas consultoras (ECSCP e EIHSCP) sobre o uso de instrumentos de identificação precoce de doentes com necessidades paliativas (...).

f) Elaborar o plano curricular de um Curso de Cuidados Paliativos de nível intermédio a realizar nas ARS (…)

g) Trabalhar com o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) no sentido de melhorar o atendimento prestado aos doentes em cuidados paliativos e suas famílias.

h) Elaborar um roadmap dos diferentes profissionais (médicos, enfermeiros, assistentes socais, psicólogos, fisioterapeutas, entre outros) com formação especializada e dos locais onde estão a trabalhar.

i) Estabelecer orientações estratégicas e técnicas no domínio da formação contínua e específica dos diversos grupos de profissionais e voluntários a envolver na prestação de Cuidados Paliativos.”

Muitas das propostas já estão em marcha.

Que mensagens gostaria de deixar no âmbito deste tema?

O caminho faz-se caminhando. Acredito no trabalho que está a ser desenvolvido. Acredito que a qualidade do mesmo está já a permitir que muitas pessoas doentes e suas famílias beneficiem destes cuidados. Acredito que a conjugação de vontades, dos Cidadãos, dos Profissionais de Saúde e do Ministério da Saúde irá permitir levar os Cuidados Paliativos onde sejam precisos, tal como o tema eleito por “The Worldwide Hospice Palliative Care Alliance (WHPCA)3 para este ano: “Cobertura Universal de Saúde – Não deixe aqueles que sofrem para trás”. O compromisso é de todos e foi assumido pelos países presentes durante uma das reunião na Organização Mundial da Saúde (OMS) para alcançar a cobertura universal de saúde até 2030. 

 

 

 

*Helena Salazar é Mestre em Cuidados Paliativos pela Faculdade de Medicina da UL (FMUL) e membro dos Grupos de Trabalho da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos (APCP) e da Comissão Nacional de Cuidados Paliativos.

É coordenadora do manual “Intervenção Psicológica em Cuidados Paliativos”, da editora Pactor – uma obra elaborada por profissionais com longa experiência em Cuidados Paliativos e que serve de guia e de incentivo à atualização profissional. Destinado a psicólogos e a outros profissionais de saúde é também de grande interesse para o público em geral com interesse numa área tão importante.

 

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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