Transplante em idade pediátrica

Histórias de gente miúda

Atualizado: 
11/07/2017 - 09:15
“A doença crónica rouba-lhes a saúde e sobretudo apaga-lhes a infância. A casa passa a chamar-se hospital, e a família passa a incluir batas azuis e brancas.” Numa iniciativa que reverterá a favor da Sociedade Portuguesa de Transplantação, Isabel Gonçalves, especialista em transplantação hepática pediátrica, relata dois dos casos que mudaram para sempre a sua vida dentro e fora do bloco operatório.

A doença crónica rouba-lhes a saúde e sobretudo apaga-lhes a infância. A casa passa a chamar-se hospital, e a família passa a incluir batas azuis e brancas. Os olhitos movem-se inquietos, como um radar, perscrutando todos os nossos gestos, potencialmente ameaçadores. Os sorrisos rasgam-se quando trazemos prendas ou boas notícias.

A capacidade que eles têm de decifrar a nossa mímica obriga-nos tantas vezes a deixar à entrada do quarto, não só a bata, mas nós mesmos como pessoas.

As mães (qual Pietà) estendem braços enormes, que crescem como o cansaço. Tentam manter a distância e semear afectos entrelaçando os dias numa malha tecida de resiliência.

Com o tempo chega também o «hospitalismo», termo indecifrável, descrito em 1946 por René Spitz. Para ele, designava um conjunto de perturbações físicas e psíquicas que as crianças podem apresentar em consequência de um internamento prolongado, se privadas do afecto materno.

Eu não sei ao certo o que é, mas sei que existe, com ou sem afecto materno. Está presente no olhar baço, nas brincadeiras e discursos que só falam de seringas, picas, drenos e cateteres. Nas birras porque sim e porque não. Nas longas horas de imobilidade, retorcendo cabelos ou destacando com precisão cirúrgica as películas dos lábios ressequidos.

A Princesa Algodão -Doce: hospitalismo*

A Princesa Algodão-Doce teve, com apenas 3 anos de idade, uma falência aguda do fígado e precisou de um transplante urgente. Na semana seguinte, com vida renovada, falava sem cessar da sua casa numa aldeia beirã, onde ratos, patos e galinhas eram companheiros de brincadeira. A família, muito carenciada, pouco a podia acompanhar (tantos irmãos e tanta terra para amanhar). A pequenita parecia aceitar a situação sem sobressaltos. No hospital, as educadoras liam-lhe histórias, que ela questionava constantemente. As enfermeiras cantavam-lhe músicas ou pintavam -lhe as unhas, que ela exibia graciosamente.

Ainda que rodeada de mimos, cateteres, pensos e perfusores, continuava a ser a Princesa Algodão-Doce. Mas, em poucas semanas, a situação complicou-se com aplasia medular (isto é, a falência da medula óssea na produção de glóbulos, vermelhos, brancos e plaquetas) e, em vez de lhe tirarem os «fios», estes cresceram… e a casa era um lugar cada vez mais longínquo.

De repente, o seu pequeno mundo ficou muito cinzento e todos nós, actores e actrizes no mesmo filme, éramos pessoas muito pouco confiáveis! Deixou de querer contar histórias, muito menos de as ouvir, e já não podia pintar as unhas, porque «estragava os monitores» e os doutores não deixavam. Nem sequer podia falar ou sorrir, porque sangrava das «engivas» e depois tinha de fazer plaquetas... Estava tudo errado, e ela não percebia nada.

Alguns meses (de sofrimento) depois, fez um transplante de medula que correu muito bem, mas a Princesa Algodão-Doce nunca mais foi a mesma. Regressou curada de corpo mas entorpecida de sentimentos. Passava horas na cama a olhar para a única parede branca onde a cama encostava e ninguém podia espreitar ou perturbar o seu estado de silêncio. Vieram os pediatras, os psicólogos e os pedopsiquiatras.

Chegaram também os sedantes, os antidepressivos e até a alimentação artificial. Mas ela só definhava, e não havia explicação técnica. Recusava-se a comer, com excepção de uma única refeição, sempre a mesma, impermeável a qualquer tentativa de persuasão ou argumento: um ovo estrelado e duas salsichas. Não a comia por prazer mas pelo prazer de nos provocar!

Tinha de ir para casa. Era hospitalismo, murmuravam os técnicos, embaraçados pelo termo e pela falta de conhecimento.

Mas a casa estava em obras, com o apoio da Segurança Social: era preciso uma casa de banho. Afinal, a pequena tinha dois transplantes, ia usar máscara, era preciso criar condições…

Temíamos pelo tempo de espera. A continuar assim, talvez a Princesa não chegasse ao dia da inauguração. Foi então que alguém sugeriu a transferência para o lar de idosos próximo da sua casa. Era novinho em folha e conseguia-se uma suíte para a mãe e para a criança. Havia também uma sala grande onde podia rever os irmãos, primos e tios. Maravilha! Ficou eufórica com a notícia, com a ideia de partir, mesmo sem saber para onde. Sair do hospital, sair, sair, era só o que importava.

Voltou à consulta uma semana depois, com mais três quilos de peso e faces coradas (ainda hoje lhe chamo carinhosamente Besuga, pela parecença com o quadro de José Malhoa Besuga e Irmão). Vinha de língua desatada e a saber de cor os nomes de todos os companheiros de 60 anos que lhe devolveram a importância de ser menina e princesa: a Princesa Algodão-Doce.

O menino Sorriso Fácil: lágrimas*

Quando o menino Sorriso Fácil atravessava os seus piores 12 dias, a mãe dividia-se entre o quarto dele e a sala de espera da Unidade. Nesta sala estava o pai, a tristeza espelhada no rosto, embalando carinhosamente o segundo filho, de apenas 3 semanas. De três em três horas, o bebé precisava de ser saciado, e a mãe amamentava. Admirável a coragem expressa no rosto desta mulher e na firmeza dos

gestos ao cuidar de um e outro filho.

Nestes 12 dias, a médica de serviço também circulava entre a preocupação com o paciente e o turbilhão de emoções que a situação familiar despertava. Entre o cansaço e a incerteza acerca do que poderia melhorar, revia tabelas, «decorava» os monitores e limpava uma ou outra lágrima que, teimosamente, por ali se instalava. Foi num

desses estados de alma, e com voz sumida, que teve de ir comunicar à mãe a necessidade de um terceiro transplante. Na sala sem cor (como todas as salas de hospital), a mãe amamentava, tranquila. Olhava embevecida o seu bebé e acariciava -lhe os deditos, um a um, como se desfiasse um rosário.

Percebeu que deveria haver uma boa razão para a médica ir até ali.

Ouviu com uma serenidade que emudecia qualquer um. Tinha muita fé, dizia, em Deus e na equipa. A médica esperava lágrimas ou a pergunta habitual (e tão temida): «Diga -me que vai correr tudo bem?» Ficou baralhada. Vinha preparada para dar explicações técnicas ou para a confortar, mas inverteram -se os papéis… Era ela quem, de nó na garganta, estava à beira das lágrimas. Que vergonha, lá estavam elas, as teimosas, irremediavelmente «cascatando».

Aflita, a mãe fitou -a, um braço segurando o recém -nascido ao peito, o outro erguido para ajudar a médica a secar o rosto. E disse: «Tenha calma, doutora, ele é rijo, vai sobreviver.»

E sobreviveu – pela fé da mãe, pelas mãos hábeis do professor que o operou e pela lição de vida que a jovem médica precisava de aprender.

É hoje um jovem universitário, saudável, activo, com um fígado doado, o presente mais importante que alguma vez recebeu.

*esta e outras estórias são relatadas no livro “Uma Vida, Duas Vidas...”, da Bertrand Editora. Um livro inédito e inspirador que retrata na primeira pessoa a relação dos médicos com o seus doentes. Os direitos de autor desta obra revertem para a Sociedade Portuguesa de Transplantação

 

Dra. Isabel Gonçalves, membro da Sociedade Portuguesa de Pediatria e atual presidente da Sociedade Portuguesa de Gastroenterologia Hepatologia e Nutrição Pediátrica. 

Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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